Você sabia que existe um remédio chinês feito a partir do couro de jumentos? Grande parte da produção do ejiao utiliza matéria-prima vinda de Amargosa, cidade baiana onde fica o principal frigorífico de abate desses animais no Brasil. Na última semana, o prefeito do município, Júlio Pinheiro (PT), anunciou a assinatura de um protocolo de intenções para ampliar essa atividade na região.
O compromisso foi firmado durante visita do gestor à companhia alimentícia Deej World, na China. Recebido ao lado de outros representantes políticos da Bahia, Pinheiro se reuniu com os empresários e conheceu as instalações da fábrica que beneficia a matéria-prima exportada do frigorífico de Amargosa e a transforma em um produto final de alto valor agregado para a população chinesa.
O ejiao é uma substância de consistência gelatinosa à base de colágeno obtido da pele do jumento. Com propriedades medicinais, é utilizado tradicionalmente como medicamento ou tônico no país asiático há séculos. Apesar de não ter comprovação científica, o produto se popularizou na China como uma espécie de elixir milagroso para tratamento de anemias, cólicas e menstruação desregulada, impotência sexual, entre outros problemas de saúde. Além da indústria farmacêutica, nas últimas décadas o ejiao também passou a ser de grande interesse para a indústria de cosméticos chinesa e hoje possui uma demanda crescente, movimentando valores bilionários.
Apesar de todo o otimismo das partes envolvidas nesse mercado, essa pode não ser uma atividade sustentável no Brasil e na Bahia ao longo dos próximos anos. É o que argumenta a Frente Nacional de Defesa dos Jumentos (FNDJ), movimento que denuncia maus-tratos e luta pela proibição do abate de jumentos. Segundo a organização, o modelo de produção dessa atividade é apoiado no extrativismo, no qual o animal é capturado da natureza, sendo comercializado em condições precárias por intermediários e, em seguida, confinados nas chamadas propriedades de triagem e espera equídea até chegar ao frigorífico.
Negócio da China
O jumento nordestino é considerado uma das três raças da espécie encontradas no território brasileiro. De origem no continente africano, o animal foi trazido ao Brasil e tornou-se um dos símbolos mais conhecidos do Nordeste, onde se adaptou bem ao clima e à cultura local. Porém, o desenvolvimento econômico e tecnológico da região contribuiu para que o bicho perdesse sua função no no dia a dia, sendo substituído pelas motos, além de outros meios de carga e transporte, e máquinas de mecanização do trabalho no campo.
Esse conjunto de fatores levou ao abandono de milhares de jumentos, já que haviam perdido o valor econômico e representavam uma despesa para os produtores. “A gente vê muitos casos de acidentes nas estradas por conta de animais abandonados”, lembra o secretário de Agricultura e Meio Ambiente de Amargosa, Igor Santa Rosa. Esse problema tornou-se uma oportunidade de negócio fácil para os empresários chineses, que buscavam um novo mercado fornecedor da matéria-prima do ejiao. Em geral, o valor pago pelo couro importado do Brasil é muito pequeno em relação ao faturamento obtido pelas indústrias que fabricam o produto final na China.
Localizado no Vale do Jiquiriçá, Amargosa empregava 147 pessoas no setor da indústria de abate e fabricação de produtos de carne de equinos em agosto deste ano, de acordo com os dados mais recentes divulgados pelo Novo Caged, do Ministério do Trabalho. O total representa um crescimento de 30% nas vagas de emprego dessa indústria em três anos. “Além da estruturação de uma cadeia produtiva, é muito importante também a geração de emprego e renda para a cidade. Tudo muito bem orientado e fiscalizado pelo Ministério da Agricultura e Pecuária. Então não vejo o porquê de tanta polêmica acerca disso”, comenta o secretário.
Em oposição, a colaboradora do setor técnico da FNDJ, a zootecnista Chiara Albano afirma que não há uma cadeia produtiva de asininos, os jumentos, estabelecida no país. “A gente não tem produção de jumento no Brasil para o abate. Existem relatos de animais que foram roubados e que são capturados na estrada. A pessoa vai juntando dentro da sua propriedade e não tem nem condição de alimentar. Esses jumentos não têm origem porque eles vêm de vários lugares, são aglomerados, depois passa um caminhão e leva para outro lugar”, denuncia a professora da Escola de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Riscos
Na Bahia, existiam outros dois empreendimentos que atuavam no abate de jumentos, um na cidade de Itapetinga e outro em Simões Filho. Hoje, segundo informações da SEAGRI, apenas um frigorífico está autorizado a realizar essa atividade no estado. Dados do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) revelam que nos últimos 24 meses, 71.143 mil jumentos foram abatidos em território baiano. Esse número reforça uma das principais preocupações dos ativistas: o risco de extinção da raça.
Para efeito de comparação, em 2017 o Censo Agropecuário realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) contabilizou um efetivo de 93.154 mil asininos em estabelecimentos rurais na Bahia. A pesquisa não inclui animais abandonados ou que vivem na natureza. Ou seja, é possível dizer que um total equivalente a cerca de 76% do rebanho que vivia nas propriedades de criação em 2017 já foi abatido apenas entre outubro de 2021 e setembro de 2023. Outras estimativas indicam que a Bahia possui, ao todo, aproximadamente 400 mil jumentos.
“O que eu sinto de verdade é que o Brasil está gerando um dano ambiental, um dano cultural, um dano genético”, opina a coordenadora geral da FNDJ, Gislane Brandão. Para a advogada, apesar de atualmente ser permitido o abate dos animais no país, ainda há uma disputa jurídica sobre a legalidade dessa atividade. Além disso, ativistas apontam riscos sanitários relacionados à falta de controle rigoroso da origem do animal, como é feito em outros mercados da pecuária, por exemplo, na produção de bovinos, caprinos, suínos e aves. A legislação exige que os jumentos abatidos tenham uma guia de trânsito animal, com informações sobre a procedência e locais para onde foram transportados.
“Por ser uma uma atividade extrativista, não tem o cuidado de biossegurança deveria existir pra produtos que são consumidos por pessoas. Pegam animais de vários locais, aglomeram, enviam pro abatedouro, deixam os animais imunossuprimidos. Esse é um modus operandi que facilita novas doenças infectocontagiosas e até a mutação de doenças”, revela a bióloga Patricia Tatemoto. Ela é representante da The Donkey Sanctuary no Brasil, uma organização internacional que combate os maus-tratos a asnos, mulas e similares.
A fiscalização do rebanho é de responsabilidade da Agência de Defesa Agropecuária da Bahia (ADAB), vinculada à Secretaria de Agricultura do Estado da Bahia (SEAGRI). Em 2021, dois casos de maus-tratos aos jumentos chamaram atenção para o problema. Em Paulo Afonso, uma denúncia levou à descoberta de uma propriedade que mantinha 13 jumentos em péssimas condições, sem acesso a comida ou a água. Já em Itatim, cerca de 200 animais foram encontrados fracos, morrendo e até sem vida, com cadáveres apodrecendo junto aos que ainda estavam vivos.
Na época, o Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) instaurou procedimento para apurar os casos. No ano passado, o MP estadual ajuizou uma ação civil pública contra a ADAB para que fortaleça a fiscalização nas propriedades criadoras e que recebem jumentos no estado. Além disso, o frigorífico Nordeste Pecuária, Indústria e Comércio, foi acionado para que suspendesse o abate de jumentos até a que a agência de defesa agropecuária regularizasse a exigência do exame de mormo — zoonose infectocontagiosa causada por uma bactéria e que pode ser transmitida para o ser humano — e de anemia infecciosa equina como protocolo para o recebimento e o abate dos jumentos nos frigoríficos.
Atualmente, o empreendimento está funcionando normalmente. Contudo, o abate dos animais na Bahia caiu mais de 25% nos primeiros nove meses de 2023 em comparação com o mesmo período do ano passado. O resultado pode indicar que a oferta de animais já diminuiu consideravelmente, o que representaria ainda um risco de perda dos empregos criados pela atividade. A reportagem tentou contato com um dos sócios e administrador do frigorífico, mas o empresário preferiu não se manifestar.
Em 2020, a ADAB publicou uma portaria que, entre outras obrigações, exige que as propriedades de triagem e espera equídea e as propriedades criadoras e fornecedoras de equídeos respeitem critérios de implantação que incluem fatores estruturais, como cercas de divisa, piquetes para separação de lotes e divisões de pastos, local para destinação adequada das carcaças de equídeos que venham a óbito, alimentação e disponibilidade de água suficiente para os equídeos existentes, além de um responsável técnico habilitado pelo MAPA. Apesar disso, a portaria isenta de atestados negativos para anemia infecciosa eqüina e mormo os animais que serão destinados ao abate.
Já neste ano, a ADAB divulgou um boletim de informação zoossanitária e epidemiologia com dados de ocorrências das atividades de vigilância em saúde animal realizadas no primeiro semestre de 2023. O documento revela que, no período, 203 notificações foram registradas para a anemia infecciosa equina e 20 para o mormo. O boletim considera que as notificações de anemia apresentam um número elevado sem investigação registrada, o que não permite análises mais detalhadas da enfermidade. “Se esse animal estiver contaminado com o mormo ele pode transmitir para o cara que está fazendo o abate e está mexendo ali diretamente com o sangue desse animal”, explica Chiara.
A reportagem entrou em contato com a ADAB, que informou que a fiscalização da atividade e, mais especificamente, dos frigoríficos é liderada pelo MAPA, por meio do Serviço de Inspeção Federal (SIF). Também procurada pela reportagem, a assessoria da Prefeitura de Amargosa alegou que apenas o prefeito poderia dar mais informações sobre o assunto, mas ele retornará somente no dia 16 da viagem à China e a comunicação está com dificuldade de falar com o gestor por conta da diferença de fuso horário.
“O nordestino não está ganhando dinheiro com isso. A gente não tem uma cadeia de produção. Estamos correndo riscos sanitários gravíssimos de levar para aquela região doenças que a gente não conhece, dizimando a população dos animais e, além disso, cometendo crime de maus-tratos”, resume a zootecnista.
(Correio)