O governo Lula (PT) mudou critérios, nos últimos dias de 2023, para repassar recursos do Orçamento apadrinhados por parlamentares na área da saúde, o que travou transferências para municípios previstos para o final do ano e abriu novo flanco de descontentamento com o Congresso Nacional.
O Ministério da Saúde, comandado por Nísia Trindade, editou uma portaria no dia 19 de dezembro endurecendo o processo de transferência desse dinheiro para as prefeituras. A verba alcançada pela norma é uma cota destinada a atender interesses de parlamentares, e a Saúde detém a maioria desses recursos.
Embora não seja formalmente considerado uma emenda parlamentar, esse dinheiro também é usado como moeda de troca do governo com a Câmara dos Deputados e o Senado.
De acordo com relatos, a mudança de regras na Saúde emperrou repasses prometidos pelo governo federal para que parlamentares aprovassem em dezembro pautas prioritárias para Lula, entre elas medidas importantes para impulsionar a arrecadação federal.
Procurado, o Ministério da Saúde argumentou ter recebido um incremento orçamentário no fim do ano. “Com isso, houve a necessidade de adequação de prazos e procedimentos, e a publicação de novas portarias”, explicou.
O Ministério da Saúde afirmou ainda que “algumas propostas submetidas ao ministério ao longo do ano não foram atendidas no exercício de 2023, sobretudo devido à insuficiência orçamentária ou por dificuldades para a superação de diligências técnicas”.
Uma das mudanças passou a exigir que as propostas para uso dessa verba tivessem uma aprovação prévia de uma comissão composta por gestores do Estado e dos municípios, chamada de Comissão Intergestores Bipartite.
Em maio, quando o governo editou pela primeira vez regras para os recursos dessa cota parlamentar, havia apenas a previsão de que os projetos aprovados nas comissões bipartites seriam priorizados. Não existia exigência dessa certificação.
A nova norma gerou queixas de congressistas – da direita à esquerda–, que dizem não terem conseguido se adequar às exigências para que o dinheiro chegasse aos prefeitos antes do fim do ano.
Há também reclamações de deputados de que o governo teria empenhado em alguns casos quantias menores do que as que haviam sido acordadas. Os parlamentares dizem que irão cobrar soluções do Executivo para resolver esse impasse assim que começar o ano legislativo, em fevereiro.
Na avaliação de parlamentares, esse novo critério estabelecido pelo governo cria mais ruído na relação entre Executivo e Legislativo, que foi marcada por críticas ao longo de 2023, principalmente com a Câmara.
Na mesma semana em que os repasses foram endurecidos, a cúpula da Câmara fez chegar a Lula recado da insatisfação com a atuação do ministro-chefe da Secretaria de Relações Institucionais, Alexandre Padilha (PT), responsável pela articulação política do Palácio do Planalto.
O próprio presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), tratou do tema em reunião com o petista.
A Secretaria de Relações Institucionais não quis se manifestar. A pasta afirmou que o assunto deveria ser tratado pelo Ministério da Saúde.
Além de Padilha, há uma insatisfação com os líderes do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), e no Congresso, Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Parlamentares cobram do governo federal mudanças nesses cargos para azeitar a relação neste ano.
Com uma base de apoio instável, o Planalto tem enfrentado dificuldades em votações no Congresso. Em 2024, com a aprovação de um calendário de distribuição de emendas, pode encontrar mais desafios para usar a verba como moeda de troca em negociações com deputados e senadores.
Padilha também foi enfraquecido na aprovação do Orçamento, já que foi aprovada autorização para que neste ano a comunicação entre o parlamentar e o ministério que liberará as emendas seja feita diretamente com o chefe da pasta.
Segundo deputados ouvidos pela reportagem, havia uma expectativa de que, após uma série de frustrações com o que classificam de letargia do governo com a execução orçamentária ao longo de 2023, poderia haver uma compensação no fim do ano –o que não ocorreu.
Lira teve que agir por diversas vezes e conversar com ministros para que o dinheiro das emendas parlamentares fosse destravado.
Emendas são um grande ativo para os parlamentares. Isso porque eles conseguem direcionar recursos para seus redutos eleitorais. Em ano com eleições municipais, como 2024, tende a aumentar a pressão dos congressistas por celeridade na execução orçamentária.
Nas palavras de um cardeal da Câmara, o governo não tem mais crédito com a Casa após uma sucessão de promessas não cumpridas.
Ele diz que há queixas generalizadas entre deputados, principalmente daqueles que votam em temas de interesse do Executivo. Na avaliação desse parlamentar, o Planalto terá dificuldades em contornar a situação se não forem tomadas medidas para reparar isso.
Um deputado aliado de primeira hora do governo minimiza a situação e diz que boa parte das insatisfações decorre do fato de o centrão ter perdido a gerência exclusiva da distribuição de emendas que tinha sob o governo Jair Bolsonaro (PL). Ele afirma ainda que é necessário um rigor com o repasse de emendas para evitar uso indevido de recursos públicos.
Parlamentares dizem já haver um reflexo na relação com os próprios prefeitos, que estão cobrando a liberação dos recursos prometidos. Uma liderança da Casa diz sob reserva que se esse mau humor bate no parlamentar, acaba recaindo na votação em plenário, e o governo perderia os créditos que possui.
Afirmam ainda que essa mudança ocorreu às vésperas do fim do ano e que, diante disso, não puderam contornar a situação. A leitura deles é que o governo gerou essa “dificuldade desnecessária”, o que só prejudica a relação com o Legislativo.