“Todos os animais aceitam viver dentro dos limites de sua condição, só os humanos querem ultrapassá-los”, brada Leona Cavalli, vestindo um casaco de pele e uma coroa dourada de máscaras. Ela parece uma entidade, mas é a loucura encarnada de Erasmo de Rotterdam.
A ideia de adaptar para os palcos “Elogio da Loucura”, livro escrito em 1509 pelo filósofo holandês, partiu da própria atriz e foi acatada com entusiasmo pelo diretor Eduardo Figueiredo. “A visão da loucura é necessária para a lucidez de todos nós. Sob a ótica da loucura, o mundo é louco, mas ela é lúcida”, diz Cavalli, sobre a obra escrita há mais de 500 anos.
No monólogo, Cavalli dá voz à própria loucura, assim como fez Rotterdam na sátira que se tornou grande influência para o pensamento humanista cristão. As denúncias afiadas à hipocrisia, intolerância, ao governo e à Igreja medieval parecem ter sido escritas hoje. “A história se repete, e essa é uma das grandes loucuras que vivemos enquanto humanidade”, afirma.
“Em muitos momentos, as pessoas têm certeza de que [o texto] é uma adaptação nossa, só que não é. É incrivelmente contemporâneo”. Exemplo é quando a loucura zomba do governante que desdenha da ciência e bajula o povo para ser aclamado como mito.
Em diversos momentos, para dar agilidade ao texto, Cavalli quebra a quarta parede com provocações direcionadas ao público. A adaptação surgiu para aproximar a plateia virtual quando a peça foi apresentada pela primeira vez durante a pandemia, no circuito Sesc em Casa.
Tirando essa interpretação em vídeo, o último monólogo de Cavalli, “Máscara de Penas Penadas”, tinha sido encenado em 2010. Mas foi justamente a solidão no palco que lançou a atriz para o sucesso, em 1985, quando estrelou “A Valsa nº 6”, de Nelson Rodrigues. Ela tinha 16 anos.
A partir dali, acumulou prêmios no teatro até estrear no cinema em 1996 com “Um Céu de Estrelas”, de Tata Amaral. Foi discípula de José Celso Martinez, o Zé Celso, que a dirigiu nas peças “As Troianas” e “Ham-let” no Teatro Oficina e em “Fausto”, em 2022. Em 2000, interpretou mais uma vez um texto de Nelson no palco, “Toda Nudez Será Castigada”, que lhe rendeu o prêmio Shell de melhor atriz.
Dois anos depois fez “Os Normais”, sua estreia na TV Globo, e não parou mais. Na emissora, acumula participações em folhetins como “Da Cor do Pecado”, “As Cariocas”, “Gabriela” e “Amor à Vida”.
Fez uma brevíssima passagem pela Record em 2017, mas voltou para a Globo. Em “Terra e Paixão”, novela das nove que antecedeu a atual “Renascer”, foi Gladys, ex-chefe da protagonista Aline, vivida por Bárbara Reis.
Recentemente também atuou em uma série para a Star+, “O Rei da TV”, sobre Silvio Santos, e tenta se manter otimista quanto a debandada de atores e atrizes das grandes emissoras. “A não exclusividade parece um movimento inexorável no mundo. Está afetando a televisão e todo o sistema audiovisual, mas eu acho positivo, pela diversidade de produções.”
A rotina agitada pelos sets de televisão não interferiu na fidelidade de Cavalli pelos palcos. “O teatro é essencial para mim. É onde tudo nasce, onde tudo começa” diz. Seguiu com o gosto por matar um leão por dia, como se diz no bordão popular dos teatros, nos últimos 20 anos.
Agora, além de “Elogio da Loucura”, também está em cartaz no Rio de Janeiro com “Ser Artista”, em que interpreta dez grandes atrizes brasileiras, como Bibi Ferreira, Marília Pêra e Tônia Carrero.
Apesar das dificuldades financeiras enfrentadas pelos teatros, Cavalli vê com bons olhos a retomada pós-pandêmica. “Vivemos um momento de predominância da imagem na mídia, e a força do teatro está potente e renascida. Quanto mais cresce o distanciamento pela tecnologia, mais cresce a necessidade do encontro ao vivo, que só o teatro que proporciona. Aquilo está sendo feito só para quem está ali.”
ELOGIO DA LOUCURA
Quando: Sáb., ás 21h; dom., às 20h30. Até 4 de maio
Onde: Teatro J. Safra – r. Josef Kryss, 318, São Paulo
Preço: R$ 25 a R$ 80
Classificação: 12 anos
Elenco: Leona Cavalli
Direção: Eduardo Figueiredo